sexta-feira, 30 de agosto de 2013

MANGUEIRA UM OLIMPO ONDE OS DEUSES FAZEM SAMBA*

Comissão de Frente do desfile de 1978. (01)

     Xangô, Preto Rico, Padeirinho, Cartola, Carlos Cachaça, Mano Elói, Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Darcy, Gradim, Zé da Zilda. Alguns deuses da imensa mitologia Verde-e-Rosa.

"Habitada por gente simples e tão pobre,
Que só tem o sol que a todos cobre,
Como podes, Mangueira cantar?" (02)

"Alvorada lá no, que beleza,
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor.” (03)

     Cartola sabia muito bem como a gente simples da Mangueira podia cantar. Quando fez o samba (gravado magistralmente mais tarde por ele e a filha Creuza), conhecida a força dos artistas de sua Escola de Samba, a inspiração dos componentes da Ala de Compositores, o lirismo dos poetas, capazes de irem buscar, nos próprios corações, versos e poemas de embasbacar acadêmicos.
     Tanto sabia que, tempos depois, uniu seu talento ao do velho parceiro, Carlos Cachaça, e ao lado do novo, Hermínio Bello de Carvalho, e contou cantando a beleza das alvoradas mangueirenses, um lugar onde ninguém chora, não há tristeza nem dissabores. Um lugar que identifica seus moradores como "gente da Mangueira", título exibido com orgulho por quem o ostenta.
     Gente como Neuma, a Dona Neuma, eterna primeira-dama da Escola e do morro. Filha de Saturnino Gonçalves, fundador e primeiro presidente da Mangueira, viu o pai morrer nos braços do amigo Cartola, em 1935, e assumiu por completo as funções de liderança, que exerceu até morrer. Famosa pelo destabocamento verbal, dizendo o que pensava a quem fosse preciso. Dona Neuma era uma espécie de Tia Ciata dos anos 1950. Durante muito tempo, única a ter telefone no morro, recebendo recados para todo mundo. Dona Neuma também abrigou quantos procuraram ajuda. Em sua casa, decisões eram tomadas mais a sério que nas próprias reuniões de diretoria. Opinião de Dona Neuma sempre teve peso e respeito, que muito bamba e valente jamais conseguiu. Falar Dona Neuma era ouvir Mangueira. E vice-versa.
     Dona Neuma era a memória viva da Escola de Samba e do morro. Da mesma maneira que era conhecida por todos, conhecia todo mundo, sabia quem era quem, quem fazia isso ou aquilo. Não se contava a história da Mangueira (ou de quem viveu perto dela) sem ouvir a moradora mais famosa. Que não tinha papas na língua e já descreveu os porres de Noel Rosa no Buraco Quente, que acabavam sempre com a primeira mulher de Cartola, a Deolinda, carregando nos braços o franzino autor de "Com Que Roupa?", para um banho na bacia, com direito a talco "nas partes intimas", a fim de curar a carraspana.
     Outra memória famosa na Mangueira é a do compositor Nelson Sargento. Sabe todos os sambas, de todos os compositores do morro. Certa vez, cantou para Cartola uns cinco ou seis inéditos. O "Divino" achou-os muito bonitos e perguntou de quem eram. "São seus", respondeu Nelson e emendou brincando: "Se me der parceria, canto mais uns dez que você não lembra", Nelson Sargento é autor, em parceria com o padastro, Alfredo Português, do samba "As Quatro Estações do Ano", que ficou conhecido como "Primavera", sem dúvida um dos mais bonitos de todos os tempos.
     A Ala dos Compositores da Mangueira sempre foi invejada pelas outras Escolas. O grande número de talentos que exibiu no correr da história justificou a fama e muitos deles fizeram carreira fora da Escola. Compondo ou cantando, tornaram-se prestigiados não só no mundo do samba, mas pelo público em geral, sendo bastante destacado o exemplo da única mulher a fazer parte dessa Ala, a cantora e compositora Lecy Brandão. Nelson Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira, Nelson Sargento, Preto Rico, Carlos Cachaça, Zagaia, Pelado, Jamelão e Zé da Zilda são outros nomes que chegaram ao sucesso, rompendo os limites da Escola.
     As mulheres tiveram também, ao correr do tempo, importante papel na história da Mangueira. além de Dona Neuma, desde os primeiros momentos como comunidade popular, o morro já tinha suas lideres. Tia Fé, mãe-de-santo afamada e dona de Bloco Carnavalesco, foi uma delas, citada pela grande descendência que gerou. Oura foi uma portuguesa conhecida como Joaquina, que chegou, instalou-se com uma tendinha, ali por 1920, e quando morreu todos chamavam o local de Joaquina. Virou nome de bairro, até hoje.
     As três Nair ficaram famosas. Nair grande, também dona de tendinha, fumava, bebia e jogava pernada como qualquer homem. Nair Pequena morreu em plena Av. Presidente Vargas, enquanto a Mangueira desfilava, e Nair Brinquinho, assim apelidada por um pequeno defeito na orelha. Lina, a primeira Porta-Bandeira, ensinou tudo à sobrinha Neide, a maior de todas. Sorriso que iluminava mais que a decoração do desfile. Neide ficou conhecida como a grande Porta-Bandeira da metade do século XX. Numa ocasião, tentada por bela oferta em dinheiro, passou para a Unidos de Vila Isabel, onde não chegou a terminar o primeiro ensaio. Um "comando" da Mangueira foi até lá e a levou de volta para casa na "mão-grande".
     Nanana foi madrinha da Bateria por quase vinte anos. Sabendo tudo de samba, cabrocha de alta linha, puxava cuíca melhor que muito batuqueiro, além de ser uma da mulheres mais bonitas da Escola. O filho, Ivo Meirelles, chegou a ser a ser presidente da Mangueira. Tereza Santos, exilada na África pela Revolução de 1964, foi a responsável por todo o movimento cultural que agitou o morro na época, ensinando, alfabetizando, orientando, politizando moradores de todas as idades, lançando as sementes do projeto Mangueira do Amanhã. E, naturalmente vestindo verde e rosa, nos dias de Carnaval. Zica, a Zica do Cartola, em seus últimos anos de vida já não vivia no morro, mas era mais fácil encontrá-la por lá, que em sua casa em Jacarepaguá.
     Gente da Mangueira. Como pode essa gente cantar?, perguntava Cartola no samba. Como pode ficar essa gente sem cantar? pergunta a vida.
 
 
* O texto e a foto foram extraídos da coleção História do Samba, capítulo 05, p.'s 86-88.

(01) - Foto extraída do livro Mangueira, a Nação Verde-e-Rosa, p.108;
(02) - SALA DE RECEPÇÂO – Cartola;
(03) - ALVORADA – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio B. de Carvalho.

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