quarta-feira, 11 de setembro de 2013

EU SOU NEIDE, EU SOU A ESTAÇÃO PRIMEIRA*

Neide, Porta-Bandeira, capa.

UMA RELÍQUIA DO CARNAVAL
      Com o mesmo bailado de sempre a porta-bandeira conserva a pureza da Escola.
     A Escola de Samba do Rio de Janeiro, onde dançar bem, cantar direito e entender uma dezena de estilos compunham um aprendizado natural, praticando nos morros e subúrbios remotos e anualmente mostrado à cidade, morreu há muito tempo (mais de trinta anos, segundo os especialistas. Sobre seu túmulo floresceria, pela década de 1950, uma vegetação curiosa e fascinante, de raízes fincadas no passado, mas de copa aberta a toda sorte de influências. Vigorava ainda o samba-enredo longo, a Bateria tinha uma cadência definida, os passistas evoluíam livres) mas, já então, germinava uma necessidade de mais bem impressionar plasticamente. E, uma após outra, características fundamentais do que preservava o nome Escola de Samba foram se transformando, num processo de metamorfose que ainda hoje não se completou.
     Um único remanescente dos primeiros tempos guardaria, praticamente incólumes, o desenho e o significado da figura original: o bailado imponente e gracioso da Porta-Bandeira, em torno da qual improvisa, cotes e protetor, o Mestre-Sala. Se o samba-enredo ficou reduzido a uma pequena quadra ou sextilha, mais um estribilho, se os passistas obedecem a uma coreografia decorada, se as Baterias inventam variações e sincopadas, se as Escolas deixaram e se de samba – nada disso afetou a Porta-Bandeira e o Mestre-Sala. Pelo menos por enquanto, seguem eles como supremos sacerdotes do culto ao estandarte que os outros milhares de associados têm de venerar e respeitar.
 
Neide na Mangueira: "Não há mais respeito pelas famílias", p.44
 
     Pelo menos por enquanto, pois até os mais autênticos representantes dessa linhagem ilustre já pressentem vizinho o momento de sua capitulação. "Estou esperando chegar a nossa vez", lamenta Neide Gomes Santana, a Neide da Mangueira, que em 25 anos de sambista assistiu ao desmoronar de preceitos e dogmas, e que agora aos 35 anos de idade, reina soberana como a maior Porta-Bandeira em atividade. "Arranjaram um jeito de dançar com o braço para i alto, solto, parecem estar voando", denuncia Vilma, da Portela, considerada por muitos como a maior Porta-Bandeira de todos os tempos e fora do honroso posto, por sua vontade desde o Carnaval de 1969.
     Para a quase totalidade dos 64 mil compradores e ingressos para o desfile das Escolas de Samba carioca (o mais barato a 50 cruzeiros), a posição do braço é, por certo, irrelevante. Para uma Porta-Bandeira de tradição e toa falha é grave. A mão livre, de acordo com as normas do bailado, deve se apoiar na cintura. E apenas o dedo mínimo da outra mão, em nome da graça e da leveza, firmará mastro e pavilhão, cujos 18 quilos, em média, se sustentarão no talabarte passado ao peito. Assim desfila a franzina Neide (1,60 metro e 54 quilos), carregando ainda uma fantasia que nunca pesa menos de 20 quilos e que, este ano, custou 40 mil cruzeiros. "Algumas abraçam o mastro", critica ela, "mas tal gesto não é mesmo o mais bonito".
 
Na Bateria da Escola: como no tempo em todos eram de samba, p.46
 
     Nascida no morro da Mangueira numa época em que a falta de condições elementares de urbanização era compensada pela convivência solidária, Neide foi se cercando de samba, assim como seus contemporâneos e antepassados, na medida em crescia. Aos 10 anos desfilou pela primeira vez. E aos 13 disputaria a vaga de Porta-Bandeira, deixada por sua tia Nininha. Venceu mas, fora do terreiro de ensaios, teve de enfrentar as ameaças de uma corrente, "uma pinta-brava mesmo", disposta a amedrontá-la com navalhadas. Alertada, a menina Neide mandou seu recado: "Pode ficar preparada, com a navalha que eu já estou escolada na mão e não erro uma pedrada".
     Desde então só deixaria de sair com a bandeira e sua Escola no Carnaval de 1965, porque a diretoria se recusou a pagar sua fantasia. Neide já desfrutava, aquela época, da condição de mulher bem-sucedida, casada com o também mangueirense e vendedor de imóveis Carlos Santana, que lhe deixou, ao morrer no ano passado, um bar no barulhento mercado e São Cristóvão. Também por essa época já sofria com as mudanças de vida no morro. Tanto que se mudou de lá para uma casa alugada próximo ao Bar da Neide, temerosa quanto ao futuro de seus dois filhos, de 16 e 10 anos. "Não saímos querendo virar gente fina", ressalva, "mas porque não podíamos deixar os filhos convivendo com drogas e assaltos. Os marginais de hoje não respeitam as famílias".
 
 
Com o Mestre-Sala Rouxinho: "Ele sempre se comporta bem", p.45
 
     Além de se afastar o morro onde nasceu, pouco depois, em 1969, Neide sofreria uma separação talvez mais grave, quando saiu da Mangueira seu parceiro por treze anos, anos, o incomparável Mestre-Sala "Delegado". "Foi um dos maiores que já vi no mundo do samba", afirma. "Antes de morrer, ainda quero aparecer junto com ele na avenida". Não só para ela mais para a própria Escola e para os admiradores de desfile em geral, aquela seria uma pera enorme. Desfazia-se, simplesmente, uma das mais harmoniosas duplas jamais vistas, de certo modo, era como se começasse a agonizar uma instituição cara e essencial para a defesa do Carnaval Carioca.
     Nos anos seguintes, já caracterizados pelos passistas de evolução ensaiada e pelo samba-enredo transformado em sucesso comercial, Neide perseguiria em vão a perfeição perdida. Até que, no ano passado, tendo "Robertinho" por Mestre-Sala, sofreria o vexame de tirar nota 09 – em vez do 10 conquistado em 19 desfiles. "Ele estava estreando na função, ficou mais preocupado em posar para os fotógrafos", explica Neide. E esse é um tipo de desatenção que um Mestre-Sala jamais pode se permitir, como esclarece o jornalista Sérgio Cabral, autor o livro "Escolas de Samba: o que, quem, quando, como e por quê". "O Mestre-Sala jamais pode existir isoladamente, não pode fazer presepada", diz Cabral. "Sua função é dar proteção à parceira e, fundamentalmente, à bandeira da Escola". Ainda mais precisa, a antropóloga Maria Júlia Goldwasser, autora de uma tese de mestrado sobre a Mangueira, depois publicada em livro ("O Palácio do Samba"), lembra que, no passado, a rixa entre dois ranchos (os precursores das Escolas) se traduzia no roubo da bandeira rival. "E a função primitiva do Mestre-Sala era a de escoltar a Porta-Bandeira", explica.
 
Na cozinha do bar: bem-sucedida, p.46
 
      Apesar de todos os percalços, Neide da Mangueira continua uma sambista persistente, entusiasmada e empenhada na luta pela vitória de sua Escola. Para este Carnaval, teve a garantia de um parceiro mais experiente, "Roxinho" – "que tem sempre um ótimo comportamento". Para os próximos, como em todos, continuará com a disposição até certo ponto atávica de desfilar na avenida. "Sempre fui pobre e crioula", conta Neide, "e nessa condição jamais conheci divertimento melhor que o Carnaval". E, para quando não mais puder desfilar, alimenta o sonho de passar o estandarte da Mangueira para a sua filha. Confiante e imodesta, Neide garante: "Ela será uma boa Porta-Bandeira, como a mãe dela".
     Talvez não subsistam, ao chegar a vez da filha de Neide, as regras a que uma Porta-bandeira de hoje obedece. E, antes de lamentar, os sambistas e especialistas em samba procuram avaliar e compreender como essas transformações vêm se impondo já há várias décadas. A não ser um ou outro romântico mais renitente, que o compositor Elton Medeiros inclui entre "os bem-intencionados, mas burros", a maioria entende que o próprio crescimento do Rio acabaria por atingir, inevitavelmente, a vida das Escolas. "A Portela saía de uma localidade remota chamada Osvaldo Cruz", recorda Sérgio Cabral, "e hoje Osvaldo Cruz é um bairro dentro de uma verdadeira cidade, que é o subúrbio de Madureira. Hoje existe loja da Sears no Méier. As Escolas também teriam de acompanhar essas evoluções". Para Maria Júlia, isso nem chega configurar uma ameaça tão grave. As alterações, segundo ela, "seriam perigosas se representassem a destruição das Escolas. Mas elas, pelo contrário, vêm se desenvolvendo cada vez mais".
 
Com os filhos: longe do morro, p.46
 

*(Texto e fotos extraídos da revista Veja de 03/03/1976, p.44-46). 

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