Neide, Porta-Bandeira, capa.
UMA RELÍQUIA DO CARNAVAL
Com o mesmo bailado de sempre a porta-bandeira conserva
a pureza da Escola.
A Escola de Samba do Rio de Janeiro, onde
dançar bem, cantar direito e entender uma dezena de estilos compunham um
aprendizado natural, praticando nos morros e subúrbios remotos e anualmente
mostrado à cidade, morreu há muito tempo (mais de trinta anos, segundo os
especialistas. Sobre seu túmulo floresceria, pela década de 1950, uma vegetação
curiosa e fascinante, de raízes fincadas no passado, mas de copa aberta a toda
sorte de influências. Vigorava ainda o samba-enredo longo, a Bateria tinha uma
cadência definida, os passistas evoluíam livres) mas, já então, germinava uma
necessidade de mais bem impressionar plasticamente. E, uma após outra,
características fundamentais do que preservava o nome Escola de Samba foram se
transformando, num processo de metamorfose que ainda hoje não se completou.
Um
único remanescente dos primeiros tempos guardaria, praticamente incólumes, o
desenho e o significado da figura original: o bailado imponente e gracioso da
Porta-Bandeira, em torno da qual improvisa, cotes e protetor, o Mestre-Sala. Se
o samba-enredo ficou reduzido a uma pequena quadra ou sextilha, mais um
estribilho, se os passistas obedecem a uma coreografia decorada, se as Baterias
inventam variações e sincopadas, se as Escolas deixaram e se de samba – nada
disso afetou a Porta-Bandeira e o Mestre-Sala. Pelo menos por enquanto, seguem
eles como supremos sacerdotes do culto ao estandarte que os outros milhares de
associados têm de venerar e respeitar.
Neide na Mangueira: "Não há mais respeito pelas
famílias", p.44
Pelo menos por enquanto, pois até os mais
autênticos representantes dessa linhagem ilustre já pressentem vizinho o
momento de sua capitulação. "Estou esperando chegar a nossa vez",
lamenta Neide Gomes Santana, a Neide da Mangueira, que em 25 anos de sambista
assistiu ao desmoronar de preceitos e dogmas, e que agora aos 35 anos de idade,
reina soberana como a maior Porta-Bandeira em atividade. "Arranjaram um
jeito de dançar com o braço para i alto, solto, parecem estar voando",
denuncia Vilma, da Portela, considerada por muitos como a maior Porta-Bandeira
de todos os tempos e fora do honroso posto, por sua vontade desde o Carnaval de
1969.
Para a quase totalidade dos 64 mil
compradores e ingressos para o desfile das Escolas de Samba carioca (o mais barato
a 50 cruzeiros), a posição do braço é, por certo, irrelevante. Para uma
Porta-Bandeira de tradição e toa falha é grave. A mão livre, de acordo com as
normas do bailado, deve se apoiar na cintura. E apenas o dedo mínimo da outra
mão, em nome da graça e da leveza, firmará mastro e pavilhão, cujos 18 quilos,
em média, se sustentarão no talabarte passado ao peito. Assim desfila a
franzina Neide (1,60 metro e 54 quilos), carregando ainda uma fantasia que
nunca pesa menos de 20 quilos e que, este ano, custou 40 mil cruzeiros.
"Algumas abraçam o mastro", critica ela, "mas tal gesto não é
mesmo o mais bonito".
Na Bateria da Escola: como no tempo em todos eram de
samba, p.46
Nascida no morro da Mangueira numa época
em que a falta de condições elementares de urbanização era compensada pela
convivência solidária, Neide foi se cercando de samba, assim como seus
contemporâneos e antepassados, na medida em crescia. Aos 10 anos desfilou pela
primeira vez. E aos 13 disputaria a vaga de Porta-Bandeira, deixada por sua tia
Nininha. Venceu mas, fora do terreiro de ensaios, teve de enfrentar as ameaças
de uma corrente, "uma pinta-brava mesmo", disposta a amedrontá-la com
navalhadas. Alertada, a menina Neide mandou seu recado: "Pode ficar
preparada, com a navalha que eu já estou escolada na mão e não erro uma pedrada".
Desde então só deixaria de sair com a
bandeira e sua Escola no Carnaval de 1965, porque a diretoria se recusou a
pagar sua fantasia. Neide já desfrutava, aquela época, da condição de mulher
bem-sucedida, casada com o também mangueirense e vendedor de imóveis Carlos
Santana, que lhe deixou, ao morrer no ano passado, um bar no barulhento mercado
e São Cristóvão. Também por essa época já sofria com as mudanças de vida no
morro. Tanto que se mudou de lá para uma casa alugada próximo ao Bar da Neide,
temerosa quanto ao futuro de seus dois filhos, de 16 e 10 anos. "Não
saímos querendo virar gente fina", ressalva, "mas porque não podíamos
deixar os filhos convivendo com drogas e assaltos. Os marginais de hoje não
respeitam as famílias".
Com o Mestre-Sala Rouxinho: "Ele sempre se comporta
bem", p.45
Além de se afastar o morro onde nasceu,
pouco depois, em 1969, Neide sofreria uma separação talvez mais grave, quando
saiu da Mangueira seu parceiro por treze anos, anos, o incomparável Mestre-Sala
"Delegado". "Foi um dos maiores que já vi no mundo do
samba", afirma. "Antes de morrer, ainda quero aparecer junto com ele
na avenida". Não só para ela mais para a própria Escola e para os
admiradores de desfile em geral, aquela seria uma pera enorme. Desfazia-se,
simplesmente, uma das mais harmoniosas duplas jamais vistas, de certo modo, era
como se começasse a agonizar uma instituição cara e essencial para a defesa do
Carnaval Carioca.
Nos anos seguintes, já caracterizados
pelos passistas de evolução ensaiada e pelo samba-enredo transformado em
sucesso comercial, Neide perseguiria em vão a perfeição perdida. Até que, no
ano passado, tendo "Robertinho" por Mestre-Sala, sofreria o vexame de
tirar nota 09 – em vez do 10 conquistado em 19 desfiles. "Ele estava
estreando na função, ficou mais preocupado em posar para os fotógrafos",
explica Neide. E esse é um tipo de desatenção que um Mestre-Sala jamais pode se
permitir, como esclarece o jornalista Sérgio Cabral, autor o livro
"Escolas de Samba: o que, quem, quando, como e por quê". "O
Mestre-Sala jamais pode existir isoladamente, não pode fazer presepada",
diz Cabral. "Sua função é dar proteção à parceira e, fundamentalmente, à
bandeira da Escola". Ainda mais precisa, a antropóloga Maria Júlia
Goldwasser, autora de uma tese de mestrado sobre a Mangueira, depois publicada
em livro ("O Palácio do Samba"), lembra que, no passado, a rixa entre
dois ranchos (os precursores das Escolas) se traduzia no roubo da bandeira
rival. "E a função primitiva do Mestre-Sala era a de escoltar a
Porta-Bandeira", explica.
Na cozinha do bar: bem-sucedida, p.46
Talvez não subsistam, ao chegar a vez da
filha de Neide, as regras a que uma Porta-bandeira de hoje obedece. E, antes de
lamentar, os sambistas e especialistas em samba procuram avaliar e compreender
como essas transformações vêm se impondo já há várias décadas. A não ser um ou
outro romântico mais renitente, que o compositor Elton Medeiros inclui entre
"os bem-intencionados, mas burros", a maioria entende que o próprio
crescimento do Rio acabaria por atingir, inevitavelmente, a vida das Escolas.
"A Portela saía de uma localidade remota chamada Osvaldo Cruz",
recorda Sérgio Cabral, "e hoje Osvaldo Cruz é um bairro dentro de uma
verdadeira cidade, que é o subúrbio de Madureira. Hoje existe loja da Sears no
Méier. As Escolas também teriam de acompanhar essas evoluções". Para Maria
Júlia, isso nem chega configurar uma ameaça tão grave. As alterações, segundo
ela, "seriam perigosas se representassem a destruição das Escolas. Mas
elas, pelo contrário, vêm se desenvolvendo cada vez mais".
Com os filhos: longe do morro, p.46
*(Texto
e fotos extraídos da revista Veja de 03/03/1976, p.44-46).
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