Comissão
de Frente do desfile de 1978. (01)
"Habitada
por gente simples e tão pobre,
Que só
tem o sol que a todos cobre,Como podes, Mangueira cantar?" (02)
"Alvorada
lá no, que beleza,
Ninguém
chora, não há tristezaNinguém sente dissabor.” (03)
Cartola sabia muito bem como a gente
simples da Mangueira podia cantar. Quando fez o samba (gravado magistralmente
mais tarde por ele e a filha Creuza), conhecida a força dos artistas de sua
Escola de Samba, a inspiração dos componentes da Ala de Compositores, o lirismo
dos poetas, capazes de irem buscar, nos próprios corações, versos e poemas de
embasbacar acadêmicos.
Tanto sabia que, tempos depois, uniu seu
talento ao do velho parceiro, Carlos Cachaça, e ao lado do novo, Hermínio Bello
de Carvalho, e contou cantando a beleza das alvoradas mangueirenses, um lugar
onde ninguém chora, não há tristeza nem dissabores. Um lugar que identifica
seus moradores como "gente da Mangueira", título exibido com orgulho
por quem o ostenta.
Gente como Neuma, a Dona Neuma, eterna
primeira-dama da Escola e do morro. Filha de Saturnino Gonçalves, fundador e
primeiro presidente da Mangueira, viu o pai morrer nos braços do amigo Cartola,
em 1935, e assumiu por completo as funções de liderança, que exerceu até
morrer. Famosa pelo destabocamento verbal, dizendo o que pensava a quem fosse
preciso. Dona Neuma era uma espécie de Tia Ciata dos anos 1950. Durante muito
tempo, única a ter telefone no morro, recebendo recados para todo mundo. Dona
Neuma também abrigou quantos procuraram ajuda. Em sua casa, decisões eram
tomadas mais a sério que nas próprias reuniões de diretoria. Opinião de Dona
Neuma sempre teve peso e respeito, que muito bamba e valente jamais conseguiu.
Falar Dona Neuma era ouvir Mangueira. E vice-versa.
Dona Neuma era a memória viva da Escola de
Samba e do morro. Da mesma maneira que era conhecida por todos, conhecia todo
mundo, sabia quem era quem, quem fazia isso ou aquilo. Não se contava a
história da Mangueira (ou de quem viveu perto dela) sem ouvir a moradora mais
famosa. Que não tinha papas na língua e já descreveu os porres de Noel Rosa no
Buraco Quente, que acabavam sempre com a primeira mulher de Cartola, a
Deolinda, carregando nos braços o franzino autor de "Com Que Roupa?",
para um banho na bacia, com direito a talco "nas partes intimas", a
fim de curar a carraspana.
Outra memória famosa na Mangueira é a do
compositor Nelson Sargento. Sabe todos os sambas, de todos os compositores do
morro. Certa vez, cantou para Cartola uns cinco ou seis inéditos. O
"Divino" achou-os muito bonitos e perguntou de quem eram. "São
seus", respondeu Nelson e emendou brincando: "Se me der parceria,
canto mais uns dez que você não lembra", Nelson Sargento é autor, em
parceria com o padastro, Alfredo Português, do samba "As Quatro Estações
do Ano", que ficou conhecido como "Primavera", sem dúvida um dos
mais bonitos de todos os tempos.
A Ala dos Compositores da Mangueira sempre
foi invejada pelas outras Escolas. O grande número de talentos que exibiu no
correr da história justificou a fama e muitos deles fizeram carreira fora da
Escola. Compondo ou cantando, tornaram-se prestigiados não só no mundo do
samba, mas pelo público em geral, sendo bastante destacado o exemplo da única
mulher a fazer parte dessa Ala, a cantora e compositora Lecy Brandão. Nelson
Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira, Nelson Sargento, Preto Rico, Carlos
Cachaça, Zagaia, Pelado, Jamelão e Zé da Zilda são outros nomes que chegaram ao
sucesso, rompendo os limites da Escola.
As mulheres tiveram também, ao correr do
tempo, importante papel na história da Mangueira. além de Dona Neuma, desde os
primeiros momentos como comunidade popular, o morro já tinha suas lideres. Tia
Fé, mãe-de-santo afamada e dona de Bloco Carnavalesco, foi uma delas, citada
pela grande descendência que gerou. Oura foi uma portuguesa conhecida como
Joaquina, que chegou, instalou-se com uma tendinha, ali por 1920, e quando
morreu todos chamavam o local de Joaquina. Virou nome de bairro, até hoje.
As três Nair ficaram famosas. Nair grande,
também dona de tendinha, fumava, bebia e jogava pernada como qualquer homem.
Nair Pequena morreu em plena Av. Presidente Vargas, enquanto a Mangueira
desfilava, e Nair Brinquinho, assim apelidada por um pequeno defeito na orelha.
Lina, a primeira Porta-Bandeira, ensinou tudo à sobrinha Neide, a maior de
todas. Sorriso que iluminava mais que a decoração do desfile. Neide ficou
conhecida como a grande Porta-Bandeira da metade do século XX. Numa ocasião,
tentada por bela oferta em dinheiro, passou para a Unidos de Vila Isabel, onde
não chegou a terminar o primeiro ensaio. Um "comando" da Mangueira
foi até lá e a levou de volta para casa na "mão-grande".
Nanana foi madrinha da Bateria por quase
vinte anos. Sabendo tudo de samba, cabrocha de alta linha, puxava cuíca melhor
que muito batuqueiro, além de ser uma da mulheres mais bonitas da Escola. O
filho, Ivo Meirelles, chegou a ser a ser presidente da Mangueira. Tereza Santos,
exilada na África pela Revolução de 1964, foi a responsável por todo o
movimento cultural que agitou o morro na época, ensinando, alfabetizando,
orientando, politizando moradores de todas as idades, lançando as sementes do
projeto Mangueira do Amanhã. E, naturalmente vestindo verde e rosa, nos dias de
Carnaval. Zica, a Zica do Cartola, em seus últimos anos de vida já não vivia no
morro, mas era mais fácil encontrá-la por lá, que em sua casa em Jacarepaguá.
Gente da Mangueira. Como pode essa gente
cantar?, perguntava Cartola no samba. Como pode ficar essa gente sem cantar?
pergunta a vida.
* O
texto e a foto foram extraídos da coleção História do Samba, capítulo 05, p.'s 86-88.
(01) - Foto extraída do livro Mangueira, a Nação Verde-e-Rosa, p.108;
(02) - SALA DE RECEPÇÂO – Cartola;
(03) - ALVORADA – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio B. de Carvalho.
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